"Como seriam venturosos os agricultores, se conhecessem / os seus bens!"

"A agricultura é a arte de saber esperar."Douglas Alves Bento

sexta-feira, 7 de outubro de 2011


“Trabalhador rural ‘foge’ do registro em carteira no Nordeste”



Com medo de perder benefícios sociais, agricultores recusam emprego formal

Negativa em ser‘fichado’se dá tanto entre beneficiários do Bolsa Família quanto entre pessoas que esperam se aposentar mais cedo

Por medo de perder benefícios sociais pagos pelo governo, ou na esperança de conquistá-los, trabalhadores rurais no Nordeste estão se recusando a aceitar empregos com a carteira de trabalho assinada.

A recusa ocorre tanto entre beneficiários do Bolsa Família quanto entre os que querem entrar no programa. Também entre os que pretendem se aposentar mais cedo, pelo regime especial da Previdência – aos 55 anos no caso das mulheres e 60 anos no dos homens.

Em uma das maiores fazendas de café da Bahia, na Agribahia, a dificuldade em contratar mão-de-obra formal levou à substituição de 5.000 trabalhadores em safras passadas por colheitadeiras operadas por um único funcionário.

Hoje, a empresa contrata apenas cerca de 900 pessoas para fazer a colheita em áreas de declive, onde as máquinas correm o risco de tombar.

Mesmo assim, são necessárias iniciativas como anúncios em rádio e em carros de som em feiras para arregimentar gente disposta a ter a carteira assinada por três meses ou mais e ganhar, como base, um salário mínimo por mês.

Próximo à Agribahia, na fazenda Campo Grande, o administrador André Araújo, 27, diz precisar de 150 pessoas para a colheita, mas que só consegue 40 com registro em carteira.

O resultado é que o café acaba caindo de maduro do pé, com perda de qualidade. Por um café arábica “mole” que poderia valer R$ 300 a saca, a Campo Grande acaba recebendo R$ 200 pelo café “riado” catado depois no chão.

A agricultora Luciene Silva Almeida, 28, é uma das que fogem do registro em carteira. Ela trabalha ilegalmente na região de Brejões (281 km ao sul de Salvador), apesar da forte fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho, que vem multando fazendeiros que contratam pessoal sem registro.

Mãe de dois filhos, Luciene quer pleitear o Bolsa Família e planeja se aposentar pelo regime especial da Previdência, aos 55 anos. Se ela for registrada, pode correr o risco de extrapolar os critérios que a tornam elegível ao Bolsa Família.

Isso também a tiraria da condição de futura “segurada especial”, tornando-a “assalariada rural”. A aposentadoria “especial” é um benefício social, já que o trabalhador não contribuiu com a Previdência.

Além de não poder mais se aposentar aos 55 anos, ela teria de contribuir por mais 13 anos para a Previdência e se aposentar só aos 60. Outra opção é esperar até os 65 anos e passar a receber, via Estatuto do Idoso, um salário mínimo por mês.

Foi o que aconteceu com Joselita Oliveira dos Santos, 57, que foi “fichada”por três meses há três anos. Ao tentar se aposentar aos 55 anos, teve o pedido recusado. “Agora não quero mais nenhum registro até conseguir me aposentar”, afirma.

Simone da Silva de Jesus, 27, que trabalha arregimentando pessoal para os fazendeiros, diz estar cada vez mais difícil encontrar gente disposta a ser “fichada”. “O pessoal do ‘Bolsa’ e
os mais velhos não querem.”

Sua irmã, Maria da Glória, 47, é uma delas. Mãe de cinco filhos, recebe R$ 80 do Bolsa Família e conta os dias para se aposentar aos 55 anos. “Nunca tive a carteira ‘fichada’. Não é agora que vou arriscar”, afirma.

Sindicatos de produtores rurais de Bom Jesus da Lapa (BA) e de Petrolina (PE) relatam o mesmo tipo de dificuldade.

O secretário de Previdência, Helmut Schwarzer, reconhece a existência do problema. A secretária Rosani Cunha, do Ministério de Desenvolvimento Social, diz que as “distorções” ocorrem por “desinformação”.

Já o Ministério do Trabalho promete manter “rigorosa fiscalização” no Nordeste.


Verba pública movimenta o Nordeste

Maioria dos beneficiários do Bolsa Família e dos aposentados rurais está na região

Sem emprego, beneficiários de programas sociais e aposentados são uma das principais fontes de renda nos municípios menores

O temor de perder benefícios sociais e a chance de se aposentar mais cedo estão piorando as condições de quem quer trabalhar no interior do Nordeste, principalmente na zona rural, e minando ainda mais a economia das pequenas cidades dependentes da agricultura.

Cerca da metade dos beneficiários do Bolsa Família do Brasil está concentrada no Nordeste, assim como a maioria dos brasileiros que têm renda até dois salários mínimos e dos aposentados rurais.

Isso faz com que o dinheiro público seja um dos principais motores da economia nordestina, onde o comércio cresce hoje em ritmo mais veloz que no resto do país.

Na cidade de Milagres, a 240 km ao sul de Salvador, o setor público e a BR-116, que tangencia o município, são as principais fontes de renda.

O maior empresário local, Raimundo Souza Silva, 52, é um exemplo da simbiose entre o público e o privado na região.

Silva é dono de cinco paradas para ônibus na região, de um posto de gasolina e de um hotel muito bem montado e limpo na beira da BR-116. Mas ele também já foi prefeito de Milagres duas vezes (pelo PFL) e hoje tem seu sobrinho, João Silva, como titular na prefeitura, segundo conta o filho de Raimundo, Conrado da Silva Neto, 27.

Tirando os funcionários públicos e os negócios de Raimundo Silva, sobram apenas bibocas na beira da estrada que vendem serviços para os viajantes.

Em Brejões, a 40km ao sul de Milagres, a Folha contou nove adultos dentro de uma casa visitada pela reportagem em plena tarde de uma quarta-feira.

A maioria dos presentes ou estava desempregada ou vive de benefícios sociais. “Não há nada para fazer por aqui. A gente fica olhando um para a cara do outro”, afirma Genivaldo Monteiro, 21, desempregado.

Do lado de fora, aposentados que passam o dia embaixo das árvores de uma pequena avenida conversando ou jogando são uma das principais fontes de renda do comércio.


Governo vê ‘desinformação’ aliada a ‘distorção absurda’

Previdência Social reconhece existência de problema entre os trabalhadores rurais

Ministério responsável pelo Bolsa Família afirma que é preciso investir mais em municípios para esclarecer beneficiários do programa

A trabalhadora rural Elieida de Oliveira, 27, nunca teve a carteira de trabalho assinada – e prefere continuar assim. Ela tem medo de perder os R$ 80 que recebe por mês do Bolsa Família para manter seus dois filhos, de 6 e 11 anos, na escola.

Elieida trabalha apenas em pequenas propriedades na região de Brejões, onde a fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho é mais branda e onde fazendeiros ainda se arriscam a contratar pessoal ilegalmente.

Ela recebe entre R$ 4 e R$ 5 por caixa de café colhido no pé. Se trabalhar 30 dias durante o período da colheita (que dura de três a quatro meses) e colher uma caixa e meia por dia, ganhará R$ 225 no final do mês. Se tivesse o registro em carteira, receberia pelo menos R$ 350 por mês – e , mesmo assim, não perderia o benefício do Bolsa Família.

Elieida é casada com Manuel, que não pode trabalhar por causa de um sério problema na coluna. Com quatro membros na família, mesmo que ficasse registrada durante quatro meses em um ano, recebendo um total de R$ 1.400 (quatro salários mínimos) no período, Elieida continuaria elegível para Receber o Bolsa Família.

Já a trabalhadora rural Maria Miralva Monteiro, 54, afirma que teve bloqueado o benefício de R$ 50 ao mês que recebia do Bolsa Família meses depois de ter sido registrada durante quatro meses no ano passado.

Monteiro recomenda a todos os conhecidos no programa que evitem a “carteira fichada”.

Pelo critério do MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), têm direito ao Bolsa Família as famílias com filhos com renda familiar per capita média inferior a R$ 120. No caso das sem filhos, são R$ 60.

Segundo trabalho de Luciana Jaccoud, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de todos os trabalhadores com carteira assinada no país, cerca de 9% participam de algum programa de transferência de renda estatal. Isso significa que ter a carteira assinada não impede, necessariamente, de participar de um programa se a família continuar muito pobre.

Rosani Cunha, secretária de renda e Cidadania do MDS, atribui à “desinformação” entre os beneficiados do Bolsa Família casos como o de Elieida.

Ela afirma que tanto o MDS quanto os municípios (que administram na prática o programa) têm de investir mais para esclarecer melhor os direitos e os deveres dos beneficiados.

“É preciso destacar também que a renda proporcionada pelo Bolsa Família tem um forte impacto para a erradicação do trabalho insalubre e degradante”, diz Rosani.

Em 2006, o Bolsa Família atendeu 11,1 milhões de famílias e consumiu R$ 8,6 bilhões, incluindo gastos de gestão.


Previdência
No caso dos trabalhadores rurais que “fogem” do registro em carteira para poderem manter o direito de se aposentar aos 55 anos (mulheres) ou aos 60 anos (homens), o Ministério da Previdência reconhece o problema e o qualifica como “uma distorção absurda”.

Se o trabalhador tiver um único dia de carteira assinada, perderá a chance de se aposentar pelo regime especial e terá duas opções: contribuir por mais 13 anos seguidos ou esperar até 65 anos para se aposentar pelo Estatuto do Idoso (recebendo um salário mínimo).

“O trabalhador pede ‘pelo amor de Deus’ para não ser registrado”, afirma Helmut Schwarzer, secretário do Ministério da Previdência.

Para tentar corrigir essa distorção, o governo enviou ao Congresso em abril do ano passado o projeto de lei 6.852/06.

Pelo projeto, o agricultor que tiver registro em carteira por até 120 dias em um ano não perderá a chance de se aposentar aos 55 anos ou 60 anos (mulheres e homens, respectivamente). A medida ainda não foi a plenário e saiu do regime de urgência no final de 2006.

O peso do mínimo
O Nordeste é a região do Brasil que mais tem pessoas recebendo o salário mínimo e que concentra mais da metade dos aposentados rurais do país.

O grosso dos aposentados do setor agrícola, que se aposenta pelo regime especial da Previdência, nunca contribuiu diretamente com o sistema. Por isso, o salário mínimo que passa a receber depois de parar de trabalhar é considerado um benefício social.

Segundo cálculos do especialista em contas públicas Raul Velloso, o Brasil paga hoje cerca de 30 milhões de contracheques a pessoas incluídas em programas subsidiados ou fortemente subsidiados e indexados ao salário mínimo.

Entre 1987 e 2006, os gastos com esses benefícios saltaram 1.362%, de R$ 5,2 bilhões/ano para R$ 76 bilhões, o que ajuda a explicar a melhora na distribuição de renda, especialmente no Nordeste

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